terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Fundação Casa 1

Terça feira. 7 de fevereiro de 2017. 13:07.

Fevereiro. A cidade confunde entre verões, chuvas e carnavais. Saio de casa em direção a defensoria pública do Brás, responsável pela defesa, encaminhamento e orientação de menores infratores na região central. Não espero saber o que vai se passar. Tenho certeza de que será em alguma medida trágico, mas certamente de uma forma que me escapa.
Sou recebida pela Ligia Cintra. Defensora contratada da prefeitura. Simpática. Claramente de esquerda, claramente em profundo desacordo com o sistema que faz com que ela passe a tarde acompanhando laudos, assinando papéis, procurando protocolos. Combinamos que vou acompanha-la em sua tarde de atendimentos aos pais dos menores envolvidos em processos.
Entra a primeira familia, duas mulheres e um rapaz de uns vinte anos. A Ligia pede que eu me apresente. Tenho que mentir, digo que sou pesquisadora e minha voz cede um pouco. A mulher a minha direita começa a falar. Seu sobrinho de 16 anos está na fundação casa, tem bronquite e agora a doença está em estágio crônico. O primo, ao lado da mulher, completa "A gente veio solicitar para ele ser transferido. Lá ele apanha sempre. Ele é um bom menino, apanha por que todos apanham, por que é regra da casa apanhar. Da última vez a gente não pode nem entrar pra visitar". De um jeito um pouco desajeitado explicam que desde que foi transferido para a CASA paulista os maltratos pioraram muito, assim como a bronquite.
A defensora explica pacientemente, parece não dever lealdade nenhuma a lei, mas assume a dimensão terrível daquilo tudo com a paciência de quem está trabalhando a anos: "Olha, na teoria isso tudo é contra a lei, na prática não tem nada que a gente possa fazer... Se eu mandar um laudo falando que ele apanhou, pode ser que ele apanhe mais. A gente só pode tentar melhorar o cuidado com a bronquite". Nos dez minutos de conversa descobrimos que o menino tem catarata, e pouco a pouco vai perdendo a visão do olho direito devido a falta de cuidado. A defensora coloca na ficha dele, explicando que somando a burocracia da fundação casa com a fila do sus é provável que demore. A familia sai da sala, entre um certo contentamento e desilusão. O rapaz fala baixo para ele mesmo "A teoria é diferente da prática...".
Os próximos a entrarem são um menino de 18 anos e sua bisavó. Ele chega com cara de desespero. Ela com cara de paciência, sabedoria, cara de anciã. Ele desata a falar, um pouco sem nexo, fala sobre a delegacia, que está com medo de ir, que o intimaram, que dessa vez a história da fotografia foi longe demais. Não conheço sua história e demoro a fazer sentido do que ele dispara sobre nós. Não entendo se é culpado ou vitima. Ele insiste: "E essa foto ainda por cima é velha, tem pelo menos 3 anos, e tá toda zuada, não tem nada a ver comigo." Começa a chorar e a vó baixa os olhos. A defensora começa a orientação e então as coisas vão tornando-se mais coesas. O menino mora no bairro da Pedrera, Zona Sul, por uma razão desconhecida a policia do bairro tem uma foto sua, e toda vez que chega alguma vítima de assalto mostra a foto para verificar se foi ele. Entre o medo, o desespero e a sugestão, muita gente o identifica como assaltante. O menino tem cara de bom menino, estuda e trabalha o dia inteiro para sustentar a ele e a vó. Não tem nenhuma familia a não ser essa bisavó de 81 anos. A Ligia me mostra discretamente que ele responde por 32 processos de assalto. Agora em dezembro a situação tornou-se mais drástica, por que ele fez 18 anos e se responder judicialmente já não será na fundação casa. 
Os dois estão desesperados, o menino tem algo de vulnerável, feminino, penso se a perseguição policial acirrada tem algo a ver com isso. A vó confidencia quando ele vai ao banheiro que só está esperando tudo isso se resolver para poder partir. O menino volta, ainda desesperado. Vai passar com o psicólogo do lugar. Tem que se acalmar para aguentar o dia seguinte de 14 horas de escola e trabalho. Talvez ele seja preso, não sabemos. Também não sabemos por que a policia tem uma foto dele. Saio da defensoria pensando no Gabriel. Caminho em direção ao ponto de onibus. Uma mulher sai do edificio chorando alto de alegria, grita "Meu filho está preso, graças a deus!". Me despeço de Ligia com o olhar apenas, ninguém termina de entender nada, entro no ônibus.