segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

insomnia

São seis horas da manhã e eu só quero ter um corpo são.
Ao invés disso anoiteço ao inverso
e deixo os bichinhos da insônia lentamente.
No quarto as pessoas dormem,
respiram pesado. É como se soubessem de algo que os anoitecessem certo.
Um segredo calmo.
Ou como se houvesse dentro deles uma água batendo batendo batendo
infinitamente.
Um mar que dissesse "deixa comigo" "pode ir" "vou continuar a bater".
Aqui nada me diz nada,
e espero que diga,
e nessa espera ativa passam horas empilhadas,
a garganta aperta,
e quem acaba dizendo sempre sou eu.
Eu dizendo coisas aqui nessa madrugada.
Como uma água batendo batendo
batendo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

barcelona

Eu estava indo embora. Era um domingo a noite e a cidade parecia desfeita para o que eu propunha. Deixei eles na casa. Cheios de dentes e vontades e cismas. Ilusão de que se eu deixasse aquela casa tudo passaria.
Eu sabia o nome de todos eles, e inclusive seus cheiros e vontades - como se fossem meus bichos favoritos - mas eu sabia no fundo que eles ficariam para sempre naquela casa, e eu sempre partiria, voltaria a partir, e assim infinitamente. (Sempre quis desaprender a partir).
A cidade intrincava coisas que não chegava a compreender. Luzes e barulhos, e me fez parar justo no meio disso tudo. Agora esse momento de profunda incompreensão me parece maior que a lembrança fugaz daquela casa. Quase me esqueço de seus nomes, mas no fundo sei que continuo partindo.

III

Me restaram perguntas, escancaradas no fundo da garganta. Coceira estranha entre os dedos. E uma vontade sacana no vão das pernas. Acho que não gostei por que quem normalmente faz isso sou eu.




(hai kai sobre perguntas que ficam)

no fundo da garganta
coceira entre os dedos

no ir e vir das pernas - silencio.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

3

Quando eu vi ela pela primeira vez achei que era muito bonita para estar ali, o que talvez significasse que não fosse tão bonita assim, ou que eu, mais uma vez, havia sido estúpida, e que a beleza  etc etc etc. A procurei com certa ganas de não me deixar na preguiça que é deixar-se ser sem pensar. Deu certo. Intui que talvez aquilo fosse um trabalho seu. Argui comigo mesma que talvez esse fosse um sintoma desnecessário da minha insegurança.
Nos-dançamos minimamente. Trocamos o pouco das grandes cidades, e muito somente em fotos. Com suas fotos tocou o que era alma em mim. Ou parte. Tirou-me do tédio, coisa muito improvável. Ai gerou uma certa vontade que seguiu insistindo como mosca. Não sei afinal é vontade de jogar-me em qualquer coisa (não esperava isso de mim), ou certo interesse real.
Não gostei da voz dela.
Nos buscamos minimamente. Senti certo interesse e em maior medida certo desinteresse. Percebo nela: certa tristeza, algum drama aí escondido nos meandros de um rompimento, uma vontade de ser outra pessoa. Outras pessoas, o tempo todo. Talvez tirar fotos seja o jeito que ela descobriu de poder ser, um pouco que seja, uma outra pessoa. Acho que a única pessoa interessante que conheço que quer ser outras pessoas. Ao mesmo tempo que ela me parece muito interessante, me parece perigosamente nublada.
A medida que o desinteresse dela cresce temo que talvez fosse só um embuste de trabalho autoral. Será que ela tirou uma foto de mim, nua e acabada? As cicatrizes do meu peito, a boca aberta desiludida, a falta de elegância da falta completa de consciência dos bêbados dormidos. Não sei. No tédio do Acre me debruço sobre esses devaneios tontos. Sinto que uma foto seria melhor do que talvez muita coisa.
Também me interesso e me desinteresso nessa dança líquida e conhecida. Com vontade de que tudo fosse menos desse jeito que não gosto. Gostaria de conversar mais. Uma madrugada inteira ao menos. E transar. Ou uma foto. Poderia ser uma foto.