domingo, 21 de maio de 2017

domingo

Anoitece uma tristeza em mim, e dá sede de ler a minha própria história. Gosto das histórias dos outros. Gosto de muitos tipos de história. Gosto de bartleby o escrivão, gosto de zorro, gosto dos personagens infinitos de borges. Mas hoje senti a sede de ler a minha própria história, de ver como terminam esses nós que teimam em se agarrar nas minhas pernas. O medo da solidão por exemplo. Ninguém fala nele. Todo mundo tem. Esse medo me faz fazer varias merdas. Insistir em quem eu não deveria insistir por exemplo. Ou o contrário. Outro tema da vida adulta. A ilusão. AS ilusões. Que por exemplo te fazem insistir em que você não devia também. Nem ilusão nem medo da solidão, nem porra nenhuma. Porra nenhuma. Mil mulheres desfilam na minha cabeça. Quer dizer, são bem menos que mil, e desfilar não é bem a palavra. Algumas sinceramente tropeçam, derrubam copos, chutam postes. Outras arranham discos. Tem uma que fica sentada bem tranquila numa poltrona, e nunca olha nos meus olhos.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Bagheera

Quando a conheci na cozinha ela desvendava sabores de chá com nomes esquisitos. Não lembro do chá, nem do que ríamos, mas lembro que ríamos. O jeito que seu corpo todo tremia de riso me trazia a sensação de que algum limite estava sendo ultrapassado, e isso era ou perigoso ou ridículo.
Também não sei como nem por que se estabeleceu aquele esquema de aulas, e como se um maestro invisível costurasse fluxos insuspeitos eu comecei a ir a sua casa e ela na minha. Não havia nada em mim, nem nada nela. Não havia nada premeditado que juntasse aquelas partículas no ar. Mas pouco a pouco comecei a reparar que havia algo que se exaltava no ar que existia no entre. (Em todas as situações tem o fenômeno do entre, essa coisa sem dono que acontece apesar de).
As aulas eram muito boas, e aprendíamos demasiado rápido, talvez por que de fato houvesse uma inteligência ali, e o reconhecimento mútuo disso, mas também por que o entre, (nessa altura já temos alguma intimidade com essa palavra, então peço a devida licença para promove-la á  maiúscula) O Entre propiciava determinadas coisas. Ou melhor, penso que exatamente o que caracterizava as coisas que aconteciam é que eram indeterminadas. Listo aqui de cabeça algumas dessas coisas: risos, ligeiro bem estar, vontade de ter aula por horas, aprender piano, servir sopas veganas, estar de frente, frente a frente, encontrar um bom ângulo, o ângulo preciso, aprender rápido e muito, durar, fazer durar. Como se o Entre fosse essa nota musical muito adequada, muito boa de se ouvir, e houvesse a vontade de faze-la durar.
Nos meus próprios labirintos a coisa começava a se desenhar sozinha. Se inscreveu em partes do meu corpo um certo desejo, composto principalmente da curiosidade que seria tocar essa melodia já não no entre, mas no próprio instrumento da carne. Essa curiosidade (a chamaremos assim por ora) inscreveu-se teimosa no meu corpo (ou será na minha cabeça?). Uma grande porcentagem disso que chamo "mim" sabia da inadequação completa dessa chamada curiosidade, e cedeu facilmente a ideia de que o meu corpo pensava sozinho na hipótese, e que somente era compartilhado no Entre aquela nota, aproveitada como ensejo para as sutilezas já citadas acima. Aproveitamos a melodia simples, mas realmente muito boa, para aprender alemão, piano, violão, para conversarmos sobre diversas coisas, escalar-mos ideias e paredes, suspeitarmos, rir, comer caqui.
Então houve um determinado dia. Era um dia frio, desses da última leva que te faz querer ficar em casa e não sair. A aula foi na minha casa. Havia algo diferente no ar, talvez até pior. Uma certa preguiça encostada nas costelas que fez a aula durar menos, e entrar menos em nós. No fim da aula não sei bem quem, talvez as duas, decidimos ver um filme juntas. Não sei se foi o frio, ou uma certa vontade de estar junto que a aula não foi capaz de matar, que nos motivou a isso. Deitamos. Estava frio. O filme passava por um longo tempo. Pouco a pouco ficávamos mais próximas, e depois mais distantes, como se nossos corpos oscilassem conforme uma maré invisível, comandada por uma outra lua, uma lua oculta. Pouco a pouco começou a se criar uma percepção dentro de mim, nem feita de ideia nem intuição: aquela teimosia talvez não tivesse se instaurado somente no meu corpo. O filme acabou, começamos outro, comemos algo, voltamos. Havia um olho fora do olho que observava esses movimentos, curioso para entender sobre as motivações sinceras dos dois corpos ali dispostos.
A noite caia drasticamente, o frio, a bicicleta na porta, o perigo. O perigo por trás do perigo. Um quarto mais perigoso que a rua. Era hora de ir embora, e os corpos que já não se permitiam nada, se permitiram dizer adeus.
Como se a noite, ou as semanas, ou o Entre, houvesse fermentado outras sensações, o abraço que a principio era simples, ganhou cores, cheiros, nuances, durou horas. Quando alguém falou algo, era algo que todos sabiam. Quando uma decisão foi tomada, era algo que todos concordavam. O silêncio se interpôs, e como num fim de filme as cores sons cheiros desapareceram na tela cinza. Não houveram mais aulas, nem notas, nem sílabas novas de difícil pronuncia.

sentido



Gosto de empilhar frases que me fazem sentido.
Quando as releio depois de tempos me parecem cada uma 
gestos pensados. Lixados aqui e ali, com uma sobra de madeira,
com algo feio, algo a mais, que normalmente é o esquisito que revela vida.
Talvez a diferença entre escritores e escrevinhadores é a consciência de que a vida borbulha no feio.
Estava relendo algumas passagens de textos antigos, me detive na seguinte frase:

A falta de elegancia dos bebados dormidos.

Não sei o que me conecta tanto com essa frase. A palavra elegância usada no seio do completo oposto talvez. A escolha não usual por "dormidos". Uma frase-oxímoro. 

Outra frase sobre a qual pausei: 

um bichinho inábil
e odiosamente querido.

Mais uma vez um oxímoro. 
Outra: 

por que racionalmente eu sei que nascemos e morremos sozinhos (sozinhas).

o sozinhas no final vem me falar de uma verdade, e de uma solidão ainda mais alta.

Aí nesses oxímoros acho que exatamente o que me prende é a veracidade de uma coisa ser a um só tempo dois opostos. É com ódio que temos carinho, é a elegância que comenta o bebado dormido, mesmo que a falta. É o feminino que vem adjetivar a solidão para que ela se torne mais densa. Nessas horas nos vemos em frase como um espelho que enxerga precisamente, e todavia vai além. Os opostos que em nós convergem não tem a graça de um objeto de madeira no qual convivem as bordas ásperas e as bordas polidas. Nós somos o bicho inábil, o bebado dormido, mas não e nunca o objeto terminado, despido, fechado e aberto em sentidos. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Fundação Casa 1

Terça feira. 7 de fevereiro de 2017. 13:07.

Fevereiro. A cidade confunde entre verões, chuvas e carnavais. Saio de casa em direção a defensoria pública do Brás, responsável pela defesa, encaminhamento e orientação de menores infratores na região central. Não espero saber o que vai se passar. Tenho certeza de que será em alguma medida trágico, mas certamente de uma forma que me escapa.
Sou recebida pela Ligia Cintra. Defensora contratada da prefeitura. Simpática. Claramente de esquerda, claramente em profundo desacordo com o sistema que faz com que ela passe a tarde acompanhando laudos, assinando papéis, procurando protocolos. Combinamos que vou acompanha-la em sua tarde de atendimentos aos pais dos menores envolvidos em processos.
Entra a primeira familia, duas mulheres e um rapaz de uns vinte anos. A Ligia pede que eu me apresente. Tenho que mentir, digo que sou pesquisadora e minha voz cede um pouco. A mulher a minha direita começa a falar. Seu sobrinho de 16 anos está na fundação casa, tem bronquite e agora a doença está em estágio crônico. O primo, ao lado da mulher, completa "A gente veio solicitar para ele ser transferido. Lá ele apanha sempre. Ele é um bom menino, apanha por que todos apanham, por que é regra da casa apanhar. Da última vez a gente não pode nem entrar pra visitar". De um jeito um pouco desajeitado explicam que desde que foi transferido para a CASA paulista os maltratos pioraram muito, assim como a bronquite.
A defensora explica pacientemente, parece não dever lealdade nenhuma a lei, mas assume a dimensão terrível daquilo tudo com a paciência de quem está trabalhando a anos: "Olha, na teoria isso tudo é contra a lei, na prática não tem nada que a gente possa fazer... Se eu mandar um laudo falando que ele apanhou, pode ser que ele apanhe mais. A gente só pode tentar melhorar o cuidado com a bronquite". Nos dez minutos de conversa descobrimos que o menino tem catarata, e pouco a pouco vai perdendo a visão do olho direito devido a falta de cuidado. A defensora coloca na ficha dele, explicando que somando a burocracia da fundação casa com a fila do sus é provável que demore. A familia sai da sala, entre um certo contentamento e desilusão. O rapaz fala baixo para ele mesmo "A teoria é diferente da prática...".
Os próximos a entrarem são um menino de 18 anos e sua bisavó. Ele chega com cara de desespero. Ela com cara de paciência, sabedoria, cara de anciã. Ele desata a falar, um pouco sem nexo, fala sobre a delegacia, que está com medo de ir, que o intimaram, que dessa vez a história da fotografia foi longe demais. Não conheço sua história e demoro a fazer sentido do que ele dispara sobre nós. Não entendo se é culpado ou vitima. Ele insiste: "E essa foto ainda por cima é velha, tem pelo menos 3 anos, e tá toda zuada, não tem nada a ver comigo." Começa a chorar e a vó baixa os olhos. A defensora começa a orientação e então as coisas vão tornando-se mais coesas. O menino mora no bairro da Pedrera, Zona Sul, por uma razão desconhecida a policia do bairro tem uma foto sua, e toda vez que chega alguma vítima de assalto mostra a foto para verificar se foi ele. Entre o medo, o desespero e a sugestão, muita gente o identifica como assaltante. O menino tem cara de bom menino, estuda e trabalha o dia inteiro para sustentar a ele e a vó. Não tem nenhuma familia a não ser essa bisavó de 81 anos. A Ligia me mostra discretamente que ele responde por 32 processos de assalto. Agora em dezembro a situação tornou-se mais drástica, por que ele fez 18 anos e se responder judicialmente já não será na fundação casa. 
Os dois estão desesperados, o menino tem algo de vulnerável, feminino, penso se a perseguição policial acirrada tem algo a ver com isso. A vó confidencia quando ele vai ao banheiro que só está esperando tudo isso se resolver para poder partir. O menino volta, ainda desesperado. Vai passar com o psicólogo do lugar. Tem que se acalmar para aguentar o dia seguinte de 14 horas de escola e trabalho. Talvez ele seja preso, não sabemos. Também não sabemos por que a policia tem uma foto dele. Saio da defensoria pensando no Gabriel. Caminho em direção ao ponto de onibus. Uma mulher sai do edificio chorando alto de alegria, grita "Meu filho está preso, graças a deus!". Me despeço de Ligia com o olhar apenas, ninguém termina de entender nada, entro no ônibus. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

insomnia

São seis horas da manhã e eu só quero ter um corpo são.
Ao invés disso anoiteço ao inverso
e deixo os bichinhos da insônia lentamente.
No quarto as pessoas dormem,
respiram pesado. É como se soubessem de algo que os anoitecessem certo.
Um segredo calmo.
Ou como se houvesse dentro deles uma água batendo batendo batendo
infinitamente.
Um mar que dissesse "deixa comigo" "pode ir" "vou continuar a bater".
Aqui nada me diz nada,
e espero que diga,
e nessa espera ativa passam horas empilhadas,
a garganta aperta,
e quem acaba dizendo sempre sou eu.
Eu dizendo coisas aqui nessa madrugada.
Como uma água batendo batendo
batendo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

barcelona

Eu estava indo embora. Era um domingo a noite e a cidade parecia desfeita para o que eu propunha. Deixei eles na casa. Cheios de dentes e vontades e cismas. Ilusão de que se eu deixasse aquela casa tudo passaria.
Eu sabia o nome de todos eles, e inclusive seus cheiros e vontades - como se fossem meus bichos favoritos - mas eu sabia no fundo que eles ficariam para sempre naquela casa, e eu sempre partiria, voltaria a partir, e assim infinitamente. (Sempre quis desaprender a partir).
A cidade intrincava coisas que não chegava a compreender. Luzes e barulhos, e me fez parar justo no meio disso tudo. Agora esse momento de profunda incompreensão me parece maior que a lembrança fugaz daquela casa. Quase me esqueço de seus nomes, mas no fundo sei que continuo partindo.

III

Me restaram perguntas, escancaradas no fundo da garganta. Coceira estranha entre os dedos. E uma vontade sacana no vão das pernas. Acho que não gostei por que quem normalmente faz isso sou eu.




(hai kai sobre perguntas que ficam)

no fundo da garganta
coceira entre os dedos

no ir e vir das pernas - silencio.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

3

Quando eu vi ela pela primeira vez achei que era muito bonita para estar ali, o que talvez significasse que não fosse tão bonita assim, ou que eu, mais uma vez, havia sido estúpida, e que a beleza  etc etc etc. A procurei com certa ganas de não me deixar na preguiça que é deixar-se ser sem pensar. Deu certo. Intui que talvez aquilo fosse um trabalho seu. Argui comigo mesma que talvez esse fosse um sintoma desnecessário da minha insegurança.
Nos-dançamos minimamente. Trocamos o pouco das grandes cidades, e muito somente em fotos. Com suas fotos tocou o que era alma em mim. Ou parte. Tirou-me do tédio, coisa muito improvável. Ai gerou uma certa vontade que seguiu insistindo como mosca. Não sei afinal é vontade de jogar-me em qualquer coisa (não esperava isso de mim), ou certo interesse real.
Não gostei da voz dela.
Nos buscamos minimamente. Senti certo interesse e em maior medida certo desinteresse. Percebo nela: certa tristeza, algum drama aí escondido nos meandros de um rompimento, uma vontade de ser outra pessoa. Outras pessoas, o tempo todo. Talvez tirar fotos seja o jeito que ela descobriu de poder ser, um pouco que seja, uma outra pessoa. Acho que a única pessoa interessante que conheço que quer ser outras pessoas. Ao mesmo tempo que ela me parece muito interessante, me parece perigosamente nublada.
A medida que o desinteresse dela cresce temo que talvez fosse só um embuste de trabalho autoral. Será que ela tirou uma foto de mim, nua e acabada? As cicatrizes do meu peito, a boca aberta desiludida, a falta de elegância da falta completa de consciência dos bêbados dormidos. Não sei. No tédio do Acre me debruço sobre esses devaneios tontos. Sinto que uma foto seria melhor do que talvez muita coisa.
Também me interesso e me desinteresso nessa dança líquida e conhecida. Com vontade de que tudo fosse menos desse jeito que não gosto. Gostaria de conversar mais. Uma madrugada inteira ao menos. E transar. Ou uma foto. Poderia ser uma foto.